quarta-feira, 23 de abril de 2014

Sobre os quadrinhos

Os quadrinhos não são um gênero de entretenimento: são, na verdade, uma mídia, um meio de divulgação – assim como o teatro, o cinema e a televisão.  Dizer “eu gosto de quadrinhos” é como dizer “eu gosto de teatro”: estamos falando de um veículo, e não de um estilo em si.  Esse veículo pode servir ao drama, à aventura, a pornografia, à comédia ou a qualquer outro gênero.

O americano Will Eisner (1917-2005), artista genial e sensível, mostrou que os quadrinhos  prestam-se a narrativas poéticas, dramáticas e profundas.  O sucesso das aventuras do justiceiro Spirit (desenhadas de forma magistral e inovadora) abriu caminho para as obras dramáticas que consagraram Eisner como um grande autor – a exemplo daquelas reunidas na excelente antologia New York, que mostra a solidão, os desencontros e os anseios de moradores de uma cidade grande.  

O canadense Guy Delisle chega às raias do estudo antropológico com álbuns sobre suas viagens, onde ele narra as diferenças culturais que encontrou ao redor do mundo.  Os desenhos aparentemente simples mas altamente expressivos combinam com a atmosfera das histórias e funcionam como um perfeito complemento para a narrativa.
O maltês-americano Joe Sacco usa os quadrinhos como forma de jornalismo.  Seus temas recorrentes são a Guerra da Bósnia e os conflitos sociais, políticos e culturais entre palestinos e árabes no Oriente Médio.   Sacco ganhou diversos prêmios, como o American Book Award de 1996 pelo álbum Palestina, onde narra suas viagens por Israel, Cisjordânia e a Faixa de Gaza em 1991 e 1992.  O livro retrata suas conversas com os habitantes da região - principalmente palestinos que viviam em péssimas condições.  São pessoas comuns – não necessariamente terroristas ou políticos – que estavam vivendo na pobreza, prejudicados pela burocracia e sentindo-se injustiçados. 

Outro exemplo que não poderia faltar é do também americano Art Spiegelman, ganhador do prêmio Pulitzer por Maus (“camundongos”, em alemão no original): uma história do holocausto, contada pelo pai do autor, que foi sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz.  Na história, os judeus são representados como camundongos, e os alemães, como gatos.  Apesar do toque aparentemente infantil, a trama é pesada e mostra todo o sofrimento, os conflitos, o desespero, a dor dos perseguidos, os meios utilizados para a sobrevivência – e até mesmo as marcas que esse processo deixou no pai do autor. 

Jean Giraud (1938-2012) foi um dos grandes quadrinistas franceses e, possivelmente, um dos melhores do mundo.   Ilustrou a famosa série Blueberry, ambientada no Velho Oeste, e, sob o pseudônimo de Moebius, produziu uma vasta obra de fantasia e ficção científica – que, felizmente, vem sendo publicada no Brasil pela Editora Nemo em excelentes edições encadernadas.  Em colaboração com Stan Lee, criou uma minissérie vencedora do Prêmio Eisner sobre o Surfista Prateado.     Seu talento foi admirado por cineastas como o italiano Federico Felini (diretor do clássico La Dolce Vita) e o inglês Ridley Scott (de Gladiador, Cruzada e Prometheus), além de escritores como William Gibson (autor de Necromancer, um marco da ficção científica).

Quadrinhos podem ser coisa séria.  Basta que o leitor abandone o preconceito.